segunda-feira, 25 de abril de 2016

A ideologia da lama: um olhar sobre o discurso do manguebeat


Em vários momentos da história, a música cumpriu seu papel de afirmar e expor os conflitos existentes na sociedade. Chico Buarque cantou, em versos muitas vezes disfarçados, a opressão do Regime Militar, subverteu símbolos, como o “Cálice”, para dizer o que pensava e precisava ser dito. Victor Hugo já afirmara: “a música é o barulho que pensa”

Em plena década de 90, em que os inimigos daquele momento estavam muito mais difusos que no período de “Cálice”, numa cidade que, segundo pesquisas (TELES, 2012 p. 258), era a quarta pior cidade do mundo para se morar, surge um movimento musical, inspirado na mistura de linguagens musicais, sonoras e visuais para afirmar a identidade cultural de uma população e expor contradições e conflitos intrínsecos da formação do povo recifense e pernambucano. O Manguebeat, movimento liderado por Chico Science e sua banda Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, desnudou problemas e características da formação de nossa cidade de forma irreverente e plenamente crítica. 

Se levarmos em consideração outros movimentos musicais da cultura pernambucana que têm lugar cativo no coração da população do estado, como o Maracatu e o Frevo, sendo este último patrimônio imaterial do estado e da humanidade, é ao lado dessas manifestações artísticas que o manguebeat deve estar, não só no carnaval, mas recebendo o devido incentivo e divulgação para todas as gerações, inclusive nas escolas, visto que o movimento tratou e trata de questões pertinentes à vida da periferia e das nossas cidades como um todo.

O Manguebeat, movimento primordialmente musical, utiliza-se da língua(gem) escrita, mas com uma importante dimensão oral, para dizer aquilo que os seus idealizadores pensavam. E no uso da linguagem, o movimento teve como um dos principais recursos a forma como seus autores lidavam com os símbolos/signos linguísticos. O Manguebeat utilizou-se de símbolos que, antes, não caracterizavam a posição na luta de classes que passou a ter em suas canções. Palavras como “lama”, “mangue”, “caranguejos” passaram a ganhar um novo enfoque; pois segundo Bakhtin (1997) “Todo signo é ideológico; a ideologia é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua”.

Essa modificação da ideologia é, justamente, o essencial no que se refere ao discurso veiculado pelo Manguebeat, pois ao mexer com os signos linguísticos, ao revirá-los e remoldá-los, o sujeito está afirmando sua ideologia, dizendo aquilo que pode e deve ser dito diante da posição que ele ocupa na luta de classes. As músicas do Manguebeat afirmam, a todo tempo, um posicionamento ideológico, do cidadão que reconhece a cultura local, as belezas de sua cidade, mas não se esquece de denunciar as mazelas, contradições e desigualdades que surgem desde sua fundação.

Para Bakhtin (1997), faz-se de total importância lembrar que a ideologia e os signos estão intimamente ligados, pois, segundo ele, “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo”.

Entretanto, para além disso, Bakhtin (1997) avalia que mesmo um corpo físico, que normalmente vale por si próprio, pode ser percebido como símbolo. E essa relação foi algo que o movimento Manguebeat executou de maneira exitosa. Chico Science e companhia trabalhou com símbolos físicos remoldados a fim de representar uma ideologia, ou o que Chauí (2001) chama de “contra-ideologia”. A subversão de termos como “caranguejo”, “mangue”, “lama”, “cidade” corrobora com a ideia do valor que a palavra exerce a depender da posição em que ela é enunciada diante da luta de classes. 

Segundo Bakhtin (1997 p. 35), “A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento”. O autor ainda se refere aos signos como algo indissociável da luta de classes, haja vista que signos isolados perdem o sentido e tendem a ser objeto de estudos da filologia, tornam-se algo sem vida e sem racionalidade.

Há, ainda, na relação com os signos, a mais que feliz escolha do movimento, visto que, de acordo com José Teles, “A capital pernambucana foi erguida em cima de manguezais, ela é com efeito um imenso aterro, cruzada por rios. A relação da população pobre com o mangue, sua flora e fauna, é de grande intimidade. O primeiro, senão o mais importante, estudioso desse relacionamento foi o médico Josué de Castro (...)”.

Além disso, a intertextualidade buscada nas referências de Josué de Castro - médico, geógrafo, sociólogo e político - cujo estudo sobre a fome e sobre a relação dos famintos recifenses com o mangue permearam sua obra e permeiam a do manguebeat desde Chico vivo até os tempos da Nação Zumbi sem ele, como na música "Fome de Tudo", que diz "a fome tem uma saúde de ferro..."

Por isso, conhecer, estudar e promover esse movimento que em muito ultrapassou a questão da estética musical, passando pelo cinema, moda e comportamento, faz parte de uma maneira cada vez melhor de entender as nossas raízes e os heróis modernos que a música nos proporcionou, pois como dizia Chico, "modernizar o passado é uma evolução musical".


sábado, 9 de abril de 2016

Sobre a paternidade

Quando Cecília nasceu, desaguou sobre mim toda uma série de emoções sobre as quais nem consigo falar com propriedade, nem nunca havia me deparado antes.

Desde o instante em que descobri que iria ser pai, a vontade/necessidade de sabê-la saudável, pronta, física e mentalmente para encarar o mundo era minha primeira preocupação. Essa preocupação se manifestou no dia em que ela veio ao mundo e não saí do seu lado, observando todos os seus detalhes: dedos, mãos, pernas, olhos e cabeça, já encontrando - mesmo sem querer - o que meu havia nela, como o formato da sua boca e o tamanho de seus dedos.

Daquele momento em diante, soube que minha vida mudaria para sempre. Mudaria nas limitações que o cuidado com um bebê requer da gente, mudaria naquilo a que se destinaria minhas parcas economias, mas mudaria, sobretudo, as minhas concepções sobre a vida.

Já disse em textos anteriores o quanto, embora não tenha tido o tempo suficiente para demonstrar, passei a entender melhor minha mãe e todas as suas preocupações que, no ímpeto de minha juventude, chamava de neuroses, de exageros.

Passei a ver que, mesmo com minha experiência negativa com a figura de pai, a boa paternidade existe, e de um jeito tão sutil que só o nascimento de Cecília me fez perceber, como o jeito carinhoso que machões, como homens de pouca instrução e baixo poder aquisitivo agasalham suas crias em seus braços, como se ali pudesse protegê-los para o resto da vida.

Eu, na minha experiência debutante, tento carregar Cecília no colo com a mesma sensação: a de que, em meus braços, poderei protegê-la pro resto da vida. Protegê-la das doenças, da violência, da falta de amor. Protegê-la do jeito que a sociedade nos faz educar os nossos filhos, fazendo-os pessoas individualistas, consumistas, preconceituosas e machistas.

Nessa jornada, tento, protegê-la de mim mesmo, para que não carregue os preconceitos que eu carrego,o machismo que tenho e que me esforço para combater, para que possa seguir apenas os poucos, mas valorosos bons exemplos que posso dar.

Hoje, só ao vê-la adormecer em meus braços, carrego-me de orgulho e satisfação, mas sobretudo um certo receio de fazê-la sentir o mesmo por mim quando adulta. Fazer de mim um homem melhor é condição sine qua non para deixar bons frutos no mundo que, tenho esperança, minha filha saberá semear - e colher.