sexta-feira, 3 de março de 2017

Por que frente ampla?


Quando ligamos a televisão, celulares e computadores para nos atualizarmos, é quase unânime a reação de descrença, a incredulidade com tudo o que está acontecendo no Brasil, sobretudo no que se refere ao escárnio com que os usurpadores do poder político do país encaram as decisões que tomam. E por mais que precisemos denunciar, a denúncia por si só já não basta. Por isso, de um lado temos os que apontam as saídas idealistas, baseadas pura e unicamente na vontade e numa mesma reprodução da crítica pela ética burguesa; do outro, os que devem apontar saídas buscando analisar a realidade concreta, que nos enseja uma saída com ousadia tática e convicção política.

As grandes vitórias que a humanidade obteve ao longo da história, desde a Revolução Francesa pelo menos, não se conquistariam se não ampliassem para além da classe social que buscava derrubar a classe dominante - era preciso, além de ampliar entre as classes que não eram dominantes, buscar fissuras nas classes dominantes. Como afirma Marx (1845: 49), em A Ideologia Alemã, "cada nova classe instaura sua dominação somente sobre uma base mais ampla do que a da classe que dominava até então (...)".

Ter consciência dessa necessidade é pré-requisito para atuar no campo adversário, como no momento em que estamos vivendo. É, sobretudo, viver conscientemente o exercício da tática e da estratégia, categorias políticas tão caras às esquerdas e sobre a qual é sempre válido recorrer. Saber que o objetivo estratégico, que é a construção de uma sociedade sem classes, não se dará de maneira retilínea, mas será alcançada mediante avanços e recuos no decorrer da luta de classes.

Assim foram, para ficar em apenas alguns exemplos, momentos importantes mais recentes de nossa história: desde a postura adotada por Lênin na Revolução Russa e sua preliminar de 1905, passando por episódios fundamentais no Brasil, como a construção da ANL - "frente única antifascita e anti-imperialista que congregava comunistas, socialistas e democratas avançados", cuja presidência "coube ao comandante da Marinha, Hercolino Cascardo, a Vice-Presidência ao capitão do exército Amoreti Osório e ao civil Francisco Mangabeira"(BUONICORE, 2012: 40/41), único ligado aos comunistas.

Podemos ainda citar, por mais óbvio que seja, a atuação dos comunistas no enfrentamento à já cambaleante Ditadura Militar nos finais da década de 70 e início da década de 80, momentos em que o PCdoB não titubeou em - taticamente - apoiar, inclusive, um militar no colégio eleitoral: Euler Bentes Monteiro, e que, anos depois, culminou com a derrota dos militares no próprio colégio eleitoral.

Poderíamos, assim, enumerar diversos exemplos de como e quando a tática de ampliar a base sobre a qual atuamos e a necessidade de atuar em frentes amplas foi a melhor saída tática para a luta dos trabalhadores. Exemplo maior disso, na prática, embora não tenha sido com essa nomenclatura, foi o movimento pela abolição da escravatura, que contou, entre os abolicionistas, com a presença de figuras oriundas da aristocracia rural e descendentes de escravocratas. Não é de se imaginar que recusassem o papel fundamental que cumpriu Joaquim Nabuco, por exemplo.  No entanto, para além de enumerar os exemplos, fundamental mesmo é entender os motivos pelos quais chegamos ao entendimento de que a atuação em frentes, as mais amplas possíveis, deve ser a tática a ser utilizada.

Primeiro, as classes sociais não são categorias estanques, monolíticas. Tanto nas classes dominantes quanto no proletariado existem fissuras e frações de classes sobre a qual devemos agir com táticas diferenciadas em cada momento. O Brasil, por exemplo, no período de sua República, assistiu a lutas cujas frações da burguesia - industrial e agrária - eram quem lutavam pelo poder, o que Gramsci define como "Bloco no Poder". O pacto social que levou Lula à presidência da República em 2002, com certeza, levou isso em consideração - por isso ganhamos e conseguimos governar por 13 anos, e é, por conta de uma nova fissura entre as classes dominantes - e também entre as esquerdas - que foi possível o golpe de 2016 ser consolidado, afina de contas, a frente ampla, na verdade, agora é contra nós; está do lado de lá.

Segundo: existem diferenças fundamentais entre aquilo que queremos e aquilo que realmente somos capazes de fazer. No materialismo dialético, definido como necessidade, possibilidade e realidade. O filósofo húngaro, György Lukács (1965: 135) já afirmara: "A conversão da possibilidade em realidade não é jamais um efeito automático das condições sociais, mas um efeito - baseado na modificação dessas condições - da atividade consciente dos homens". Sobre a realidade dizia Lênin: "a realidade é sempre muito mais astuciosa do que as melhores ideias, mesmo as do melhor partido". Portanto, pescar as ideias que pairam nas cabeças idealistas e colocá-las sobre os chão da realidade é extremamente necessário.

Terceiro: precisamos ser porta-vozes - ou ao menos contribuir para -  de ideias avançadas que, não necessariamente sejam as nossas. É preciso ter em mente que, sabedores de que "as ideias dominantes são as ideias da classe materialmente dominante", muito dificilmente um programa alicerçado somente em princípios  alcançaria adesão plena em momentos de crise como o que vivemos, em que as ideias conservadoras dominam os pensamentos, inclusive da classe trabalhadora.

Por isso, a luta pela democracia ainda é a grande bandeira sobre a qual podemos unificar amplos setores da sociedade: artistas, intelectuais, empresários progressistas, juristas etc. para não cair naquilo que afirmou Engels, em 1848: "predicar o comunismo em algum jornalzinho local e fundar, em vez de um grande partido de ação, uma pequena seita"(apud BUONICORE, 2009: 26).

Nesse sentido, como afirma Augusto Buonicore, em Marxismo, História e Revolução Brasileira, "a democracia burguesa é o campo mais favorável para a elevação do nível de consciência e de organização da classe operária e demais classes subalternas. Por isso, nos marcos do capitalismo, os partidos comunistas são vanguardas da luta pela democracia e contra a fascistização do Estado Burguês"(BUONICORE, 2009: 66). E esse é o nosso papel hoje, mais uma vez.

É preciso, diante desses impasses, ter clareza de que, sozinhos, não lograremos êxito em nossa missão revolucionária de emancipar a classe trabalhadora e transformar o Brasil num país mais justo e soberano. Nas palavras de Darcy Ribeiro (2014:226), "como não há nenhuma garantia confiável de que a história venha a favorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos; e há, ao contrário, legítimo temor de que, também no futuro, essas minorias dirigentes conformem e deformem o Brasil segundo seus interesses; torna-se tanto mais imperativa a tarefa de alcançar o máximo de lucidez para intervir eficazmente na história a fim de reverter sua tendência secular. Esse é nosso propósito".

Atual como nunca.

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